domingo, 5 de outubro de 2008

Tenho um espelho. Sempre o conservo comigo. Na verdade, não passa de um pedaço de vidro quebrado, aproximadamente do tamanho da palma da minha mão. As suas costas são cobertas por pequenos arranhões, mas isso não impede que reflita tudo o que se coloque à sua frente. Um fragmento de espelho quebrado na parte mais grossa, que provavelmente poderia ser encontrado em qualquer depósito de entulhos. Para mim é tudo, menos entulho.

Meus pais se casaram no 4° ano do período Taisho (1915), e minha mãe, como parte de seu enxoval, trouxe uma pentedeira com um espelho muito bonito. Quantas vezes não deve ter refletido o rosto da recém-casada, devolvendo uma imagem clara e nítida. Aproximadamente 20 anos mais tarde, entretanto, o espelho, de alguma forma, foi quebrado. Meu irmão mais velho, Kiichi, estava em casa naquele dia. Ele e eu separamos os estilhaços e apanhamos dois dos pedaços maiores para guardar como lembrança.

Pouco tempo depois, a guerra estourou. Meus quatro irmãos mais velhos partiram para as linhas de combate, alguns para lutar na China, outros na Ásia Sudeste. Minha mãe – seus quatro primeiros filhos levados para longe – tentava não mostrar preocupação. Entretanto, parecia envelhecer repentinamente. Então, os ataques aéreos a Tóquio começaram e, logo, tornaram-se uma ocorrência diária. Eu mal conseguia suportar olhar para o rosto de minha mãe. Como se isso pudesse de algum modo proteger a sua vida, eu conservava o pedaço de espelho sempre comigo, envolvendo-o cuidadosamente dentro de minha camisa, enquanto me desviava das bombas incendiárias que caíam à nossa volta.

Quando a guerra terminou, recebemos a notificação de que meu irmão primogênito havia sido morto no combate em Burma. Imediatamente pensei no pedaço de espelho que eu sabia que ele devia carregar no bolso de seu uniforme. Eu podia imaginá-lo, durante uma calmaria na luta, tirando-o e olhando o seu rosto com a barba por fazer, pensando saudosamente em sua mãe e no seu lar. Sei como ele deve ter se sentido, pois também tenho um pedaço de espelho e, quando olho para ele, me vêm as lembranças de meu irmão.

Nos tempos obscuros e problemáticos após a derrota do Japão, deixei a minha casa e fui morar em alojamentos. O quarto era pequeno, desguarnecido e feio, mas eu era pobre demais para comprar alguma coisa.Obviamente, não havia espelho. Felizmente eu tinha o meu pedaço de espelho comigo. Eu o mantinha na gaveta da minha escrivaninha. Todas as manhãs, antes de ir trabalhar, eu o tirava e examinava o meu rosto magro, me barbeava, penteava o cabelo e o emplastrava com brilhantina para que se assentasse. Uma vez por dia, quando eu tomava o espelho em minhas mãos, eu não podia deixar de pensar em minha mãe, mesmo que eu não quisesse. Quase que inconscientemente eu me encontrava pensando: bom dia, mãe!

Pensar na mãe uma vez por dia – acho que é a melhor forma de um jovem evitar cometer erros. A sociedade japonesa, na época, estava num estado de colapso moral e psicológico. Felizmente, consegui esquivar-me de cair num tipo de desespero e desesperança que poderia ter me levado a fazer algo auto-destrutivo. Devo isso ao danificado pedaço de espelho.

Havia ocasiões em que o espelho me dizia que a cor do meu rosto não estava boa, e que eu não estava aparentando bem. Com isto como uma advertência, eu usava um selo extra de racionamento e comia duas porções quando ia ao refeitório me alimentar. Houve também ocasiões em que fixei o meu reflexo no espelho, notando o modo sinistro como o osso molar de meu rosto se salientava, e tremia de desgosto, imaginando o que eu teria feito para merecer um rosto tão feio. Outras vezes, quando estava de bom humor, eu olhava para a minha imagem e esboçava um sorriso. Num certo sentido, o cuidado e a preocupação me acompanharam sempre naqueles dias, embora não chegassem a mim em palavras. O pedaço de espelho me mostrava como eu estava me alimentando diariamente e me mantinha no caminho correto.

Quando o meu mestre, Jossei Toda, estava com 19 anos, ele decidiu deixar o pequeno vilarejo em Hokkaido, onde tinha nascido, e foi para Tóquio. Nessa ocasião, sua mãe deu-lhe uma jaqueta bordada. Enquanto ele tivesse a jaqueta, enquanto ele a vestisse, ela lhe disse, ele conseguiria ultrapassar todas as dificuldades que pudesse encontrar. Era branca, com um contorno azul escuro, um bordado complicado, feito com grande cuidado e todo o amor e devoção de sua mãe. Ele a conservou por toda a sua vida.

Ele foi encarcerado durante os últimos anos da guerra. Porém, em 1945, quando a guerra terminou, ele foi finalmente libertado e pôde retornar à sua casa. Dizem que, quando ele descobriu que sua casa havia escapado de ser incendiada pelos ataques aéreos e que a jaqueta bordada ainda estava salva, ele disse à sua esposa que eles não precisavam se preocupar. Como a jaqueta estava intacta, ele sabia que tudo ficaria bem a partir de então.

Uma velha jaqueta, um espelho quebrado. Entretanto, ambas as coisas eram capazes de transmitir as orações de uma mãe. Esses objetos possuem o estranho poder de conseguir apoiar e alentar o coração humano quando este hesita. Pode ser que muitos riam e digam: que sentimentalismo ultrapassado. Porém, para mim, não há nada de ultrapassado com relação ao sentimento. A jaqueta e o espelho são as únicas coisas que se tornaram fora da moda.

Em 1952, quando me casei, minha esposa trouxe com ela um toucador novíssimo. A partir de então, comecei a usar o espelho novo. Um dia, deparei com a minha esposa com o velho pedaço de espelho em suas mãos, examinando-o com um olhar perplexo. Talvez ela tentasse imaginar por que alguém guardaria um pedaço de sucata tão imprestável, que não serviria nem mesmo para divertir uma criança. Quando o espelho estava quase indo para o lixo, contei a ela a história que o envolvia, e da ligação formada com minha mãe e o irmão morto na guerra. Ela apanhou uma caixa de madeira onde instalou o pedaço de espelho, onde se encontra a salvo até hoje.

Mesmo uma velha caneta, se tiver pertencido a algum grande escritor, é observada com admiração e respeito pelas pessoas das épocas posteriores, pois elas sentem que, de algum modo, é capaz de revelar os segredos das obras primas de um homem grandioso.

O pedaço de espelho quebrado. Sempre que olho para ele, ele me fala daqueles dias da minha juventude, difíceis de serem descritos, da minha juventude, das preces da minha mãe, e do triste destino de meu irmão mais velho, e continuará a fazê-lo enquanto eu viver.

(daisaku ikeda - um espelho - a arte de viver o cotidiano)